Quando os produtos exibem orgulhosamente as marcas de sua história…
Imagine uma coleção de móveis que tem como ponto central o uso de cortiça queimada em um incêndio florestal de grandes proporções. Pois essa é a série Burnt Cork, criada pelo designer francês Noé Duchaufour Lawrance e sua marca Made In Situ: uma ode à resiliência do material, das pessoas e do processo.
Os móveis (banquinho, cadeira, poltrona, chaise-longue, mesas de centro e de jantar) ganham forma a partir de blocos de cortiça feitos artesanalmente, nos quais a base tem textura mais granulada e deixa entrever as partes queimadas do material.
Voltando um pouco…
Comecemos do início: em 2017, Noé decidiu se mudar da França para Portugal. Enquanto dirigia na estrada, passou pela área montanhosa de Pedrógão Grande e pelos incêndios florestais devastadores que aconteceram naquele verão. A experiência lhe causou um grande impacto, e lentamente foi tomando forma: o designer se aproximou das paisagens portuguesas e da ideia do que queria fazer lá.
No final de 2018, Noé e a equipe do Made In Situ se encontraram com artesãos do Alentejo e do Algarve. Em Faro, conheceram a NF Cork, uma pequena produção familiar de cortiça – lá, o casal Tânia e Nuno produzia blocos do material para isolamento arquitetônico.
Durante a visita, observando o processo que transformava a casca de cortiça em bloco, Noé reparou numa grande pilha de restos de cortiça queimada – o material tem uma propriedade curiosa: proteger o tronco do sobreiro (ou carvalho-corticeiro) em caso de incêndio. Esta parte queimada é descascada da árvore, abrindo caminho para as próximas camadas de cortiça que irão crescer, mas a cortiça queimada não é aproveitada pela indústria.
Projetar a matéria-prima
Foi então que surgiu a ideia de usar estes pedaços rejeitados para construir algo: Noé saiu de lá decidido a criar um material único a partir dos restos de cortiça queimada, combinando-a com a tradicional técnica de blocos de cortiça da NF Cork.
Foram dois anos de experimentação para que a equipe chegasse ao resultado desejado: blocos que revelam um gradiente ascendente de granulosidades, desde a cortiça mais grossa (incluindo aqui o carvão da casca queimada, que marca presença também visualmente) até aquela com acabamento refinado. Os blocos são o elemento-chave dessa coleção e esse movimento visual dá vida e alma ao design: o desenho das peças nos convida a apreciar a transição do material de todos os ângulos.
Num segundo momento, os blocos são esculpidos em uma máquina CNC de 7 eixos para revelar as criações escultóricas que combinam formas geométricas a curvas orgânicas. Aqui se revela uma junção interessante, entre a produção artesanal dos blocos de cortiça por uma empresa familiar e o processo industrial de esculpir essa matéria-prima.
A primeira peça desenhada por Noé foi a chaise-longue, que evoluiu para a poltrona e depois para a cadeira. As três mesas (uma de jantar e duas de centro) podem ser sobrepostas, criando um jogo entre o vertical e o horizontal. E o banquinho, apoiado em apenas três pernas, talvez seja, em toda a coleção, a peça que melhor explicita a conexão entre o bruto e o refinado.
Fotos: Filipa Alves e Nuno Sousa Dias / cortesia Made In Situ