À primeira vista, é difícil acreditar que este tapete tenha surgido a partir de uma pintura de Rugendas (1802-1858) que retrata imigrantes chineses cultivando chá no Brasil. Trata-se da última investida conceitual do designer Guto Requena, feita a convite do Coletivo Amor de Madre em parceria com a tapeçaria de luxo Tai Ping, de Hong Kong, e apresentada na 4ª Inventory, espécie de galeria pop-up que aconteceu em paralelo à Design Miami, no mês passado. Complexo, o processo teve várias etapas, como a pixelização que definiria a base para o desenho geométrico e a colorização eletrônica. A ideia, conta Guto, foi criar “uma narrativa visual contemporânea encapsulando parte da história entre China e Brasil”. Em série limitada a 30 peças, o tapete será comercializado no Brasil pelo Coletivo Amor de Madre.
Escrevi o texto aí de cima para a Casa Vogue de janeiro. Mas a conversa com o Guto foi tão bacana e tão rica que senti vontade de dividir mais com vocês. Espero que gostem! Eu simplesmente adorei esse projeto e a história do processo, principalmente a forma como uma imagem criada há quase 200 anos pode servir de base para um produto totalmente contemporâneo. Viva a riqueza do olhar!
(Antes dos trechos da entrevista, e já que uma imagem pode valer por mil palavras, as fotos abaixo vão mostrar cada fase do processo.)
E agora, os trechos mais bacanas da conversa com o Guto:
Design do Bom: Explique como funcionou o uso da melodia para a escolha das cores usadas na estampa.
Guto Requena: Na verdade, esse trabalho é um desdobramento do meu interesse de como a música pode virar design, então houve duas experiências anteriores, que foram a cadeira Nóize e a coleção de vasos Era Uma Vez. Nesse caso, a gente escolheu uma música que fala sobre separação – Silk Road, de Tan Dun, tocada por Yo Yo Ma. A ideia foi fazer uma investigação sobre a China, já que a Tai Ping é uma das mais tradicionais empresas chinesas. Então a primeira coisa foi achar a imagem que retrata aquela primeira colônia de imigrantes chineses que veio para o Brasil, e então eu quis misturar isso com uma música para criar um produto. E então eu caí nesse autor de ópera – é uma ópera contemporânea que fala sobre separação, e aí eu achei que tinha tudo a ver. Foi uma música que me emocionou muito quando ouvi. Então a gente programou com o Grasshopper, que é um software que a gente tem usado muito aqui no escritório, e conforme a música toca, randomicamente, em função dos picos da música, as cores vão sendo distribuídas, e quando a música termina é que a gente vê o resultado desse processo. A paleta de cores fui eu que escolhi, mas a forma como essa paleta é posicionada no desenho, o software define de acordo com a música selecionada.
Então essa base toda do desenho, quero dizer, o processo de pixelizar a imagem original, depois transformar tudo em tons de cinza, destacar os pixels mais claros e transformá-los em vértices para criar um desenho, isso tudo é um processo mais “manual”, enquanto a parte da colorização é feita de uma forma mais tecnológica?
Exatamente. Na verdade, eu diria que a tecnologia digital está desde o começo, mas a gente teve mais controle no início, e nessa parte final é quando a gente perde absolutamente o controle. Mas no final, o resultado ficou bonito, que era o que a gente queria.
Você me falava que a Tai Ping é uma das empresas mais tradicionais da China, é isso mesmo?
É, ela tem mais de 80 anos, e é considerada a empresa de tapeçaria de luxo mais importante no mundo. Ela tem uma megaloja em Nova York, também em Londres, ela tem várias… também em Paris. E ela é uma tapeçaria artesanal, essa é a grande característica dela, todos os tapetes são tecidos à mão. Esse tapete levou 2 meses para ser tecido, ele é todo de fios de seda. E foi uma honra porque a Tai Ping valoriza muito o design. Então quando eles me contataram, fiquei superfeliz. Na verdade, o convite surgiu pelo intermédio da Galeria Amor de Madre, para expor na 4a edição da Inventory (uma galeria pop-up de jovens designers que acontece todos os fins de ano, paralelamente à Design Miami, coordenada pela brasileira radicada em Miami Thais Fontenelle). E o tema da Inventory desse ano era “tempo”. Por isso, quando apresentei o projeto eles adoraram, porque envolvia o tempo no sentido de memória, tudo isso. Ano passado eu já tinha participado da Inventory, com a Nóize, essa foi a segunda iniciativa.
O tapete vai entrar em linha de produção, ou será peça única ou de série limitada? Já existe alguma definição nesse sentido?
O primeiro tapete já tinha sido vendido para uma colecionadora de Londres antes mesmo de abrir a exposição, então a gente ficou super feliz. E aí vamos fazer uma tiragem de 30 tapetes. Também vamos expor novamente em Dubai, durante a próxima Designers Days. E agora eu estou criando uma performance de design com a Tai Ping, eles curtiram tanto o resultado, que está frutificando. Vai ser uma nova coleção, mas baseada na mesma história, em design paramétrico, memória e música.
(…) Para mim, a tecnologia digital tem exatamente o mesmo papel, a mesma importância, que falar de cores, materiais, texturas. Isso vem dessa minha pesquisa com design paramétrico, desenvolvida ao longo dos 10 anos que trabalhei no NOMADS, da USP, e durante o meu mestrado. A pesquisa está online de graça no meu site, quem quiser acessar pode baixar.
(…) Uma coisa que é importante no meu trabalho e que permeia tudo, independentemente da tecnologia, é essa questão da memória, que é o que mais tem me instigado. Acho que se a gente coloca a memória nas peças de design automaticamente a gente aumenta o ciclo de vida do produto. Então é diferente de eu comprar uma peça porque ela está na moda – eu compro uma peça porque ela tem uma história. Se eu me identifico com essa história, o ciclo de vida do meu produto vai ser muito mais longo, porque eu não vou dar esse produto porque ele saiu de moda. Eu vou passar ele para algum membro da minha família, para alguma outra pessoa que eu gosto, vou ficar mais tempo com ele. Em geral, todos os produtos que a gente vem desenvolvendo aqui no escritório têm, no fundo, essa história da memória como fio condutor.