Os objetos são capazes de contar histórias silenciosas. As “coisas” que nos cercam, de itens do cotidiano como utensílios e ferramentas a elementos arquitetônicos, “falam” sobre aspectos sociais, econômicos, culturais e simbólicos de um grupo, e também das relações entre as pessoas e os objetos que produzem e consomem.
Esse é o mote da exposição “Artefatos do Sul – Legados da imigração alemã e italiana”, realizada no Farol Santander de Porto Alegre sob a competente curadoria de Adélia Borges.
Ocupando o térreo do edifício histórico no centro da capital gaúcha, num espaço generoso com 1.100 m2 de área e um monumental pé-direito de 12 metros, a mostra reuniu mais de mil itens da coleção de Tina e Calito de Azevedo Moura. As peças, produzidas entre a segunda metade do século 19 e as primeiras décadas do século 20, foram organizadas em nove núcleos temáticos e valorizadas pela cenografia impecável concebida pela própria Tina, sua irmã gêmea Lui Lo Pumo e Ana Paula Gallarraga.
“O acervo [de Tina e Calito] permite constatar que a forma segue sim a função, mas segue também a cultura, o tempo, o lugar, e o desejo e os sonhos das mentes que concebem os objetos e das mãos que os conformam. E isso precisava ser mostrado a um público maior, numa exposição que fizesse jus à sua importância e representatividade”, afirma Adélia Borges no catálogo da exposição.
O conjunto exposto é um registro precioso da memória da imigração alemã e italiana no Sul do Brasil e o timing foi muito oportuno, já que neste ano de 2024 se comemoram os 150 anos da imigração italiana no Brasil e os 200 anos da imigração alemã no Rio Grande do Sul. São criações anônimas que respondem às necessidades encontradas pelos imigrantes e que revelam grande engenhosidade e inteligência para solucionar os diferentes desafios com os materiais e condições disponíveis na época.
Como afirma a crítica e historiadora da arte Paula Ramos no catálogo, os “imigrantes alemães e italianos (…) trouxeram consigo, quando muito, equipamentos para trabalhar, algum vestuário e objetos de caráter religioso e pessoal. Para as demandas do dia a dia, à medida que se impunham, eles precisaram responder com fábrica – Homofaber. ‘Fabricar’ significa apoderar-se de algo da natureza, convertê-lo em manufatura e dar-lhe uma aplicabilidade. Segundo o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, o homem pode ser reconhecido por sua fábrica, no sentido das coisas que faz e como faz; o mesmo vale para grupos em determinados tempos e lugares. Fabricar, em seu caráter antropológico, denota, uma vez mais, identidade, alicerçada na cultura e na memória.”
Por tudo isso, a exposição prometia ser um grande sucesso, mas a enchente que assolou o Rio Grande do Sul no início de maio levou à sua interrupção prematura. Felizmente está tudo muito bem registrado no catálogo da exposição, tanto em imagens quanto em textos assinados pela curadora Adélia Borges, o colecionador Calito de Azevedo Moura e três especialistas convidados: Günter Weimer (um dos principais historiadores de arquitetura no Brasil, professor de Arquitetura na UFRGS e especialista em design pela Escola de Ulm), Alfredo Aquino (artista visual, editor e curador gaúcho) e Paula Ramos (crítica e historiadora da arte, professora do Instituto de Artes da UFRGS).
O catálogo pode ser baixado no seguinte link: https://www.adeliaborges.com/exposicao/artefatos-do-sul/
Nesse nosso Brasil miscigenado e multifacetado, a influência dos imigrantes alemães e italianos é definidora para a região Sul – mas não só, como pontua Adélia no catálogo: “Ressalvo que me refiro a um componente específico da formação da Região Sul, cuja história começa com os povos originários e passa pela vinda de portugueses e espanhóis, seguida pelos africanos escravizados. No início do século 19, antes da chegada de outros europeus, a população negra e indígena superava a população branca no Rio Grande do Sul. Certamente nenhuma história sobre o estado estará completa sem considerar essa pluralidade”. Isto posto, a realização dessa exposição (e do catálogo que a acompanha, que conta com a participação de diferentes estudiosos gaúchos) foi um importante movimento no sentido de “trazer o foco para o ainda pouco conhecido e analisado design desenvolvido pelos imigrantes europeus no sul do Brasil”, segundo a curadora.
Arremato com as palavras de Alfredo Aquino no catálogo: “Esta exposição apresenta-nos as testemunhas silenciosas da história do desenvolvimento e do enraizamento social desses grupamentos humanos que mudaram de continente, de hábitos, que refizeram seus valores culturais, suas amizades, renovaram os elos de convivência, superaram antagonismos e preconceitos, enriquecendo a formação de um país com o seu trabalho, a sua perseverança, o seu fervor, a sua disciplina, a sua esperança e o seu amor à vida.”
Os 9 núcleos expositivos
Pode entrar que a casa é sua recebe os visitantes com um conjunto de 18 portas de madeira maciça, feitas entre 1860 e 1920, aproximadamente. “Elas dão as boas-vindas ao público e funcionam como um rito de passagem para o visitante”, conceitua Adélia.
As várias formas do sentar apresenta cavalinhos de balanço, bancos, cadeiras e banquetas, em diferentes estilos tipologias.
Ferramentas do fazer exibe conjuntos ligados à produção de vinho, marcenaria, ferraria, construção e ao trabalho rural e têxtil.
Tijolo por tijolo exalta os elementos ligados à casa do ponto de vista construtivo: tijolos, bandeiras (aberturas ou paineis fixos posicionados acima das portas) e lamparinas são alguns exemplos.
Preparar e servir o pão de cada dia traz uma enorme quantidade de equipamentos de cozinha, incluindo louças, cerâmicas, adornos decorativos e outros instrumentos.
A infância nas colônias reúne brinquedos da época, lousas, penas e tinteiros.
O céu que nos protege destaca a religiosidade característica dos imigrantes por meio de oratórios, esculturas de santos e impressões de pinturas.
O eterno e o efêmero faz o contraponto entre as fotos de época que registravam momentos marcantes das famílias e os produtos do design gráfico, como folhetos publicitários e cartões de boas festas encomendados por estabelecimentos comerciais.
Mande notícias do mundo de lá faz um apanhado de cartões postais recebidos ou enviados pelos imigrantes. “Do lado de lá, a terra deixada para trás surge em imagens idílicas; do lado de cá, fotos dos primeiros núcleos urbanos montados no Sul constituem um valioso registro histórico. (…) Os postais costuram a saudade entre familiares e amigos separados pelo oceano”, pontua a curadora.
(Fotos: Fabio Del Re_Carlos Stein/VivaFoto)